sábado, 16 de janeiro de 2010




Por André Stangl

Introdução

O filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) percorreu um longo caminho até que sua filosofia amadurecesse e desse frutos. Boa parte da Filosofia dita ‘Pós-Moderna’, de Derrida, Foucault, Rorty a Latour, cada um a seu modo, é parte deste fruto. Mas não é o caroço. É interessante observar que após a intensificação do processo de mundialização, a Filosofia não ficou imune, seja por sua parente próxima a Antropologia, que lhe trouxe novos sabores, seja pela sua irmã a Arte, que lhe impregna de diferentes cores. Heidegger trouxe em sua filosofia um renascimento, a redescoberta do mesmo, passado e presente se re-encontram, Oriente e Ocidente se reconhecem. Claro que esta mútua compreensão passa também ela por um amadurecimento e, mesmo assim, ainda estamos longe de uma indiferenciação. Talvez esta só seja possível com o fim de uma perspectiva unilateral, “a apatridade que assim deve ser pensada reside no abandono ontológico do ente” (HEIDEGGER, Sobre o “Humanismo”, 1973:360). Portanto, deste processo só conseguiremos ter a visão dos que permanecem, sob a condição de ‘ocidentais’, ou seja, não nos adianta a tentativa de substituição de um pólo por outro, de uma pátria por outra. Mas enquanto pertencente a uma comunidade buscar no diálogo o mútuo reconhecimento da mesma essência entre identidades diferentes.

“Nós praticamente ainda não começamos a pensar as misteriosas relações com o Oriente, que assomaram à palavra na poesia de Hölderlin” (Ibid., 1973:359-60).

Heidegger foi ao limite, sua filosofia está sobre a linha divisória entre Ocidente e Oriente, talvez sua mensagem possa contribuir para reunir esse todo, fragmentado e desunido, que é a humanidade de hoje. Uma possível analogia para a palavra chinesa Tao é com a idéia de Caminho, assim como Logos, Tao é intraduzível, sendo por isso chamada de palavra-guia; Heidegger parece falar do Tao quando fala do Caminho do Campo. É esta relação, que aqui nos propomos meditar, sem esquecer da ‘identidade’ que é própria a cada um, buscaremos o elo que se oculta por trás desta diferenciação. Para Heidegger o que chamamos Filosofia no Ocidente é algo muito distinto e próprio do Pensamento ocidental. No Oriente não existiu Filosofia, mas existiu Pensamento. O Oriente é uma criação do homem ocidental, com fins imperialistas. Vasto é o que chamamos de Pensamento Oriental, por isso nos concentraremos na raiz comum do pensamento originário do Zen que remete ao pensamento originário do Tao, um é chinês, o outro é japonês. Segundo consta, no Japão iletrado entrou o ideograma chinês que lá foi transformado e frutificou. Assim, na raiz comum do Zen e do Tao está o I Ching, livro oracular que serviu de base ao florescimento do pensamento chinês e da escrita.

02. A Identidade do ser

No Ocidente a identidade sempre esteve associada ao ente, não se pensa em entidade sem identidade, o ser chegou a ser pensado como um traço da própria identidade. Desde a Antiguidade que se matura a relação do mesmo consigo mesmo, mas a mediação implícita ao Princípio da Identidade só retomou o dinamismo, mais tarde, com o Idealismo especulativo que inverte esta relação, pensando a identidade como um traço do ser. A mesmidade de pensar e ser que Heidegger desenvolveu em sua conferência o “O Princípio da Identidade” (1957), está no sentido do mesmo na mediação da identidade. O Princípio da Identidade fala do Sendo, então enquanto princípio do pensamento, já que pensar e ser são o mesmo, a identidade não pode ser limitada a uma representação abstrata tipo A=A. A Identidade é ontológica, é unidade e totalidade como o Sendo.

“A questão do sentido deste mesmo é a questão da essência da identidade. A doutrina metafísica apresenta a identidade como um traço fundamental do ser. Mas agora se mostra: ser com o pensar faz parte de uma identidade, cuja essência brota daquele comum-pertencer que designamos Ereignis. A essência da identidade é uma propriedade do Ereignis” (Idem, O Princípio da Identidade, 1989:146).

O trabalho inicial de Heidegger era uma polêmica com Descartes e Kant, tentando reverter a idéia que os dois faziam do que é o ser e as confusões criadas pelas imagens cartesianas e kantianas. O ser é um ente, e isto se dá a partir da compreensão do próprio ser como Sendo. Esta compreensão vem da presença do ser-no-mundo; é a partir desse ser-no-mundo que se abrem as possibilidades de ser no tempo e é mediante essa cotidianidade que o ser se re-vela.

O Sendo é a própria essência do ser, enquanto que o ser-no-mundo é a sua contingência, a identidade está na singularidade do próprio ser. O ser possuído pelo Sendo é capaz de compreender os outros entes como uma totalidade, porém, é através dos outros entes que o ser se vela enquanto ente. É a própria existência que vela o ser, o mundo é uma constituição necessária, mas não determina o ser. É na mundaneidade que o ser enquanto identidade confronta-se com a alteridade de outro ser. Desta divergência converge a unidade do Sendo que é o ser do ente. Todo ser é, assim, sempre alteridade, mesmo que seja na solidão ou no isolamento, pois a pre-sença é sempre compartilhada e estar no mundo é viver em con-vivência.

03. A Linguagem do ser

Para Heidegger, na linguagem de-mora o ser. O Sendo só pode se re-velar através da linguagem, se o pensamos ele ‘é’, pois o pensar aproxima o ser da Clareira (onde sua pre-sença contrapõe-se ao ente). A imagem de uma floresta assemelha-se à existência humana, vários são os caminhos possíveis para se chegar a uma Clareira.

Os gregos falavam do ser com o ser e para o ser, pelo menos até racionalizarem o falar, associando a alétheia à retidão argumentativa da lógica; a alétheia originalmente recolhia a verdade transcendente do Sendo. A lógica prende a verdade ao ente e fala do ente como se do Sendo falasse.

A contemporaneidade enxerga a tudo com os olhos da técnica, o efeito conta mais que o sentido, há uma primazia da razão sobre o ser, que aliena o homem de seu sentido, “esta relação (o pertencer originário da palavra ao ser) permanece oculta sob o domínio da subjetividade que se apresenta como opinião pública” (Idem, Sobre o “Humanismo”, 1973:349). A sociedade domina o significado possível de um termo e conduz seu uso a um fim específico, destruindo, assim, a essencialidade ontológica da língua. Os gregos nem ‘filosofia’ usavam para designar o pensar, a dimensão do agir ultrapassa as concepções de um tempo sobre si mesmo, as palavras quando perdem seu poder de ser, tornam-se técnicas, correspondem ao instituído (dicionários, gramáticas), não trazem mais ao homem a alteridade instauradora do real.

A consciência advém do fato da língua permitir identificar o ser como ente ‘ec-sistente’ (ser revelado) e dependente da linguagem. Mas o que entendemos como linguagem não nos leva ao ser, no máximo indica-nos o Caminho da Clareira. “A libertação da linguagem dos grilhões da Gramática e a abertura de um espaço essencial mais originário está reservado como tarefa para o pensar e poetizar”(Ibid., 1973:347), nossa relação com a linguagem deve ultra-subjetivar-se (ir além do sujeito), nada deve comandar a linguagem, pois na Clareira impera o inefável, ante o qual nossa língua e nossa identidade nada são.

Da relação entre o poetar e o pensar, ressurge a atenção com a linguagem que hospeda o Sendo. Quando Parmênides, em seu poema nos deixou a mesmidade do pensar e ser, o elo entre poetar e pensar ainda não havia sido esquecido. O pensamento ainda correspondia ao Sendo, a linguagem que velava re-velava e o mistério, ainda, era aceito no apelo da poesia e do pensamento.

04. O Tao do ser

Lao Tse (570 a.C.), que segundo reza a tradição, foi um dos iniciadores o Taoismo, nos legou o “Tao Te King” quando aos 80 anos tentava sair da China e ao ser reconhecido pela guarda da fronteira foi intimado a escrever, pois até então se recusara a escrever sobre o Tao. Suas reflexões sobre o Tao, assim como o pensamento de Heidegger, inspiram ao ser o Caminho do re-encontro com o mesmo. O sentido do Tao é a escuta do apelo do ser, o Tao é tão inatingível quanto o Logos e como ele impera.

“O Tao é como um sonho cintilante. Sumindo, piscando, ele personifica formas e coisas. Parece recuar para longe e turvar-se. Contudo, há em seu âmago uma essência” (Tao Te King, 21).

Para o pensamento de Heidegger sobre o Sendo foi fundamental o contato com o pensamento de Heráclito sobre o Logos, que é “o recolhimento que torna presente e manifesto tudo que é em sua totalidade enquanto ente. Logos é o nome que Heráclito dá ao Sendo” (HEIDEGGER, Hegel e os Gregos, 1973:408). Tao é um dos nomes que nomeia o Sendo no Oriente. O Tao é um Caminho que nos leva de volta sem sair, um espanto demorado que se renova, um movimento que precisa do crescimento e não do deslocamento e um crescimento que precisa do mesmo e não do novo.

Antes de alguém estudar o Zen, as montanhas são para ele montanhas e as águas são águas. Quando, porém, conseguir uma percepção da verdade do Zen, mediante as instruções ministradas por um bom mestre, as montanhas não são para ele mais montanhas, nem as águas são águas. Mais tarde, quando tiver alcançado o lugar de repouso (isto é quando tiver atingido o satori), as montanhas serão novamente montanhas para ele e as águas serão novamente águas. (SUZIKI, 1980:65).

Nesta paisagem Zen citada por Suzuki, é possível re-encontrar a proximidade do mesmo de que nos fala Heidegger em sua conferência sobre “A Coisa” (1950). Na extrema dificuldade do simples, a distância do estar aqui que não é mais que o velamento do ser, subjetivado ou objetivado, que deixa a unidade e parte numa jornada sem fim. Oscilando, indo e vindo, no pensamento dicotômico que representa a diferença em opostos e esquece da mutiplicidade da unidade e da unidade da multiplicidade. A idéia que já tomamos da ‘coisa’ antes de pensar nela, mesmo antes de vê-la, o pressuposto de identificá-la como ‘coisa’, nos impede de aceitá-la enquanto ‘coisa’. Trazemos a ‘coisa’, antes da ‘coisa’, por isso está a ‘coisa’ sem ser. Fazemos com que o ser sem o Sendo se torne ‘coisa’ sem coisidade.

“O passo de retorno de um pensar ao outro, não é, porém, uma simples mudança de posição. Nunca poderá ser algo semelhante, porque todas as posições, juntamente com os modos de suas mudanças, permanecem jungidas no âmbito do pensar que representa” (HEIDEGGER, A Coisa, s/d:173-4).

A representação ocupa o lugar da ‘coisa’, quando deveria nos trazer a coisidade da ‘coisa’. No grego antigo, antes da escrita, o símbolo personificava a própria ‘coisa’, não importando a distância física da ‘coisa’ mencionada. Nós esquecemos da pre-sença que está por trás do símbolo, tratamos a linguagem como se estivesse morta, falamos da ‘coisa’ como se ela não estivesse viva. A linguagem escrita parece ter contribuído neste sentido, tornando-se ela própria um ente.

Quando fala do Caminho do Campo, Heidegger parece falar do Logos. O caminhar e o pensar são semelhantes, pois do que pensamos nos afastamos quando queremos nos aproximar, assim como num Caminho o fim não se limita ao destino, mas ao trilhar: “Caminho: para cima, para baixo, um e o mesmo” (HERÁCLITO, §60). Cada passo ou pensamento retorna, se se tenta fixá-los, a mesmidade do ser e o Sendo. “Do Logos com que sempre lidam se afastam, e por isso as coisas que encontram lhes parecem estranhas” (Idem, §72). Nossa noção de tempo se confunde com a de espaço, o percurso do caminho não pode ser medido ou calculado; a própria representação que damos ao espaço se curva na totalidade de um círculo, só o espaço enquanto ente tem fim: “Princípio e fim se reúnem na circunferência do círculo” (Idem, §103). A reversidade do Caminho “assemelha-se ao tensionar do arco. O que está alto é trazido para baixo, e o baixo, puxado para cima. O comprimento é diminuído, e a largura, expandida” (Tao Te King, 77). Chega a ser possível imaginar um diálogo entre Lao Tse e Heráclito, que por sinal eram contemporâneos, mas o que esta proximidade nos diz?

“Pensando, de quando em vez, com os mesmos textos ou, em tentativas próprias, o pensamento, sempre de novo, anda na via que o Caminho do Campo traça pela campina.(…) O Caminho acolhe tudo que vigora à sua volta e restitui o seu a todos que o percorrem. Os mesmos campos e as mesmas encostas dos prados escoltam o Caminho do Campo em cada estação do ano, mas com uma proximidade sempre nova.” (HEIDEGGER, O Caminho do Campo, s/d:46-7)

No pensar está o Logos e no ser o caminhar, quando por um Caminho passamos seguidas vezes, se estivermos atentos notamos seu incessante renovar. Assim se dá também com o pensar que não se esgota numa conclusão. O ser está no caminhar, pois a proximidade está no mesmo. Caminhar e ser são o mesmo pensar.

Bibliografia:

HEIDEGGER, M. Sobre o “Humanismo”: carta a Jean Beaufret, Paris. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
____________ . Hegel e os gregos. In: op. cit.
____________ . O Princípio da Identidade. In: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1989.
___ . A Coisa. s/d. fotocopia
____________. O Caminho do Campo. Petrópolis: Vozes, s/d. fotocopia.
HERÁCLITO. ‘Fragmentos’. In: Os Pensadores Originários: Anaximandro, Parmênides e Heráclito. Petrópolis: Vozes, 1991.
SUZUKI, D. T. Introdução ao Zen-budismo. In: JUNG, C.G. Psicologia e Religião Oriental. Petrópolis, Vozes, 1980. p. 65
TSE, L. Tao Te King. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.

FONTE: http://andrestangl.wordpress.com/2009/09/11/heidegger-e-o-pensamento-oriental/



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